35 anos de profissão
- Hegle Fraga P. Dias
- 23 de ago. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de ago. de 2023
Nesse mês de Agosto, de 2023, completo 35 anos de história na psicologia. E, com um olhar sensível e carinhoso para todo esse trajeto, dou início ao meu site e blog.
Como primeira história, venho contar pra vocês um pequeno recorte de todos esses anos. Vem comigo nessa jornada?
Em maio deste ano, uma querida mestra me perguntou: “como foi seu caminho até escolher a psicologia?”
E, então, minha lembrança passou pelas inúmeras brincadeiras e brinquedos daquela época. Minha lembrança mais antiga, no entanto, “do que gostaria de ser quando crescesse”, depois de ser alfabetizada, era de que eu queria ser como o professor Pardal, dos gibis do Pato Donald e Tio Patinhas. Ele tinha ideias, conhecimento e soluções que me encantavam e inventava coisas maravilhosas para o meu olhar infantil!

Foi por conta disso que, um dia, perguntei para a minha mãe o que eu poderia ser para ter invenções assim como o professor Pardal e, então, ela me disse que os cientistas eram as pessoas que inventavam coisas! Essa passou a ser a minha resposta quando me perguntavam o que eu seria depois de crescida.
Um pouco mais tarde, eu considerei, brincando com plantas e microscópios, que eu queria inventar remédios! Acabei desistindo, quando tive contato com a química. E, por mais que tenha considerado ser Médica por amar biologia, a depressão que vivenciei me fez perceber que, na verdade eu gostaria de saber cuidar desses sofrimentos que as pessoas têm, mas que são invisíveis, que nem todo mundo vê, reconhece e ajuda. E que doem para caramba!
Então me dei conta que queria estudar psicologia.
Com 16 anos comecei a estudar psicologia. E de lá para cá, por mais que tenha feito pausas, eu jamais parei de me dedicar ao estudo e vivência dessa arte.

Hoje, abismada, me dou conta de que se passaram 40 anos, dentre os quais 35 anos são de formação e profissão!
E, durante todo esse trajeto, sempre procurei ter como guia para a minha formação a necessidade do ir além, de trabalhar o corpo, de aceitar o transcendente e as escolhas existenciais expressas de maneiras diversas num ambiente terapêutico rico, afetuoso e criativo. Esse era (e é) o meu ideal.
Lá atrás, quando me formei, aparentemente era necessário mais do que eu tinha para oferecer no exercício da minha profissão. Em uma cidade do interior, preconceituosa, onde predomina uma tradição elitista e médica, não corresponder ao padrão imaginário da psicóloga, de saia, sapato scarpin e batom ferrugem num consultório com divã era furada. Imagina só, que coisa de outro mundo, era ter uma jovem psicóloga com roupas alternativas colocando músicas dentro do consultório e propondo relaxamentos e exercícios de imaginação? Isso sem contar que essa mesma psicóloga jovem era quem propunha tirar os sapatos, se jogar em lamentos nas almofadas, expressar angústias com os dedos sujos de tinta e se olhar acabrunhado num enorme espelho sentindo seu próprio corpo...
E se, nas horas vagas, essa mesma psicóloga jovem gostasse de chopp, de violão e de sair num carro lotado de amigos homens pelas madrugadas para cantar, papear e admirar a lua? E se ainda fosse “macumbeira”? Ora, ora...
Era sobre escolher “ser o que se é” ou obter “sucesso profissional” e, adivinhem, qual foi a escolha?
Escolhi viver e continuar estudando, caminhando em meus passos lentos e firmes, cheios de som e vida com o que fazia sentido para mim naquela época! É engraçado olhar para traz e ver o caminho torto, cheio de curvas e tão vívido que fiz, sem arrependimentos, por ter feito o que era possível para mim em cada escolha, dando conta das demandas que surgiam e das minhas próprias
necessidades e anseios a cada momento.
Sinto que já contei histórias antes... mas elas são tantas! Na disciplina de Psicologia Experimental recebi ameaças de ser expulsa da Faculdade; isso porque me recusei a pegar o ratinho na caixinha pra submetê-lo a condicionamentos. Sem contar o fato de eu – e minhas amigas mulheres – termos que lidar, frequentemente, com atitudes machistas de um certo professor! Foram muitos chopps com essas mesmas amigas pra gente fofocar e conversar sobre as tantas experiências que estávamos tendo ali. Eu não sei quantas páginas escreveria e ainda deixaria de contar tantas outras histórias que já não me lembro, e que só num encontro com as colegas conseguiria evocar.

"Foi-se” a adolescente e “veio” o amadurecimento... Passei a conviver com pessoas mais velhas e, com elas, vieram aprendizados e experiências que me trazem saudades sem fim e o reconhecimento de que sou feliz pela escolha que fiz. Foi nessa mesma época que concluí a minha formação em Arteterapia e Gestalt-Terapia, fui na contramão dos padrões que predominavam e reinavam na Psicologia.
Optei por uma escola baseada no humanismo/ existencialismo e holismo, propondo a ampliação da visão de mundo e as possibilidades de trabalho no encontro terapêutico.
Estive presente lá atrás no II Congresso Nacional de Gestalt-Terapia, hoje me sinto orgulhosa e motivada ao me encontrar com pessoas queridas e amigas que, hoje, caminham por lugares em que já me aventurei anos atrás. Percebendo que me sinto sintonizada e afinada com o que e faz vibrar e que acredito.
Hoje consigo me ver nesse novo lugar de “só sei que nada sei”, ao mesmo tempo em que “tanto experimentei”. Foi preciso me atrever e buscar. Como somos o todo e não partes dele, ao olhar para trás também vejo minha pessoa, meu corpo e os meus contextos. Foi uma luta constante me conciliar com um corpo gordo, fora do padrão, amaldiçoado por tantos. Adoeci nesse processo e foi preciso e necessário me enxergar além do julgamento do outro. Foi preciso me permitir simplesmente existir. E isso me exigiu muita terapia, muito amor e cuidado de pessoas especiais que não me esqueço jamais.
Me lembro do hospital onde fui trabalhar na equipe de cirurgia cardíaca, sem experiência nenhuma, mas onde tive experiências incríveis. Fui para Sampa, para o Hospital da Beneficência Portuguesa na mesma semana que o comediante Mussum estava lá. Me senti solitária, exigida e boicotada, mas ao mesmo tempo foi incrível. Amei o trabalho. Aliás, se tem uma coisa que amo é meu trabalho. E esse foi um dos que mais amei!
Alguns anos depois passei num concurso público para uma cidadezinha que gostava muito e tinha amigos muito amados. Foi na Secretaria de Assistência Social que eu me senti um peixe fora d’água! Era o início de uma política pública (PAIF), ainda incipiente no fazer do psicólogo, e eu na minha formação primordialmente clínica, não sabia o que fazer. Aprendi muito e aprendo todos os dias com as minhas queridas colegas e amigas, Assistentes Sociais. Não havia referências, que hoje construídas e em construção, meus jovens colegas absorvem e dão show! Admiro, me sinto desafiada e prossigo, ciente que contribuo em pequenas “cotas” possíveis na vida de tantas famílias vulneráveis. Então sigo. Sigo feliz e firme na convivência com minhas colegas de trabalho e amigas queridas e no propósito de executar uma proposta de trabalho gigante, que nos exige além da conta, mas que germina a ideia de um país mais justo e humanitário.
Na clínica, atualmente, mantenho meu ninho. Meu trabalho de sempre, meu amor, meu fazer.
Nutro, constantemente, a satisfação e desejo de ver crescer as pessoas que se permitem estar sob meus cuidados, que compartilham comigo suas histórias, suas dores e suas alegrias, me agraciando com a confiança de se entregar.

Simplesmente não consigo me imaginar em outra profissão. Mantenho, em minhas palavras, a gratidão por tudo que posso presenciar no meu dia-a-dia, nessa função de ser psicóloga... Como costumo explicar para as crianças: “psicóloga é alguém que estuda e se prepara para compreender e cuidar dos sentimentos, dos pensamentos e dos comportamentos das pessoas”.
E é assim que me percebo, imperfeita, mas sempre em busca do meu melhor.
Obs.: na foto, um presente de uma cliente querida.
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